Setor público ainda busca equilíbrio entre transparência e proteção de privacidade
Setor público ainda busca equilíbrio entre transparência e proteção de privacidade |
Sancionada em 2011, a LAI (Lei de Acesso à Informação) estabelece normas para garantir a transparência. Qualquer cidadão pode solicitar informações a órgãos e entidades públicos, que, como regra, devem conceder o máximo de acesso possível.
Assim como a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), a LAI prevê limites sobre dados pessoais sensíveis. Mas, a depender do contexto, detalhes relacionados à vida privada podem ser expostos se forem de interesse público.
Marina Atoji, diretora de programas da ONG Transparência Brasil, diz que, no caso da lei de acesso à informação, os problemas surgem quando esse aspecto não é levado em conta.
Esta é a segunda reportagem da série Profissional Público pela Democracia, que debate temas ligando responsabilidades dos governos e de seus servidores na proteção das instituições, buscando dar respostas a anseios sociais. O especial integra o núcleo editorial Vida Pública, parceria entre a Folha e o Instituto República.org.
Publicado em dezembro do ano passado, relatório da Transparência Brasil identificou que, durante o governo Bolsonaro, houve aumento de uso impróprio da proteção a dados pessoais para restringir pedidos via LAI.
O estudo analisou o período entre 2015 e 2022 e concluiu que 80% das recusas indevidas ocorreram nos anos do mandato do ex-presidente. Foi o caso dos sigilos sobre o cartão de vacinação e das entradas dos filhos dele no Palácio do Planalto, que tiveram acesso negado sob a alegação de se tratarem de questões privadas.
Em maio, o presidente Lula (PT) assinou mudanças na LAI para reduzir as limitações no acesso a documentos que contenham dados pessoais. O novo decreto determina que o órgão público deve ocultar ou anonimizar trechos relacionados à vida privada, mas manter o acesso no restante do documento, inclusive nos que tenham dados de terceiras pessoas.
Secretária Nacional de Acesso à Informação, vinculada à CGU (Controladoria-Geral da União), Ana Túlia de Macedo reafirma que as leis de proteção de dados pessoais e de transparência são compatíveis, e que as recentes alterações visam ressaltar o princípio da máxima divulgação.
“Busca-se evitar interpretações equivocadas quanto à aplicação das regras da LGPD no setor público, que resultam na imposição de sigilo indevido a documentos de interesse público. O novo texto reforçou que a alegação da existência de dados pessoais em documentos públicos não pode ser usada de forma geral e abstrata para a negativa de acesso à informação.”
Ela considera que a restrição de acesso a um documento pode variar conforme o conteúdo pessoal contido nele e, por isso, não deve ser vista como impedimento para a transparência.
Marina Atoji diz que, antes de decidir sobre a divulgação de uma informação, é necessário ser feito um teste de danos para avaliar as consequências, tanto nos benefícios à população quanto os prejuízos aos envolvidos.
“É preciso projetar, desde a alta administração aos servidores de carreira, que a transparência é importante, que as informações produzidas e armazenadas pelo Estado são, em geral, de interesse público, e que o sigilo é a exceção. Assim, fica mais definido o que vai ferir a privacidade ou não”, declara.
Segundo Atoji, a transparência é um contraponto às fake news por promover acesso amplo à informação direto da fonte, além de ser um recurso importante para o jornalismo profissional.
Rudinei Marques, presidente do Fonacate (Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas do Estado), diz que sistemas como o portal da transparência também são uma ferramenta de combate às notícias falsas. Cidadãos podem consultar, por exemplo, os repasses da união às cidades diretamente no site, o que ajuda a mitigar a desinformação relacionada ao tema.
Por outro lado, ele diz acreditar que a transparência excessiva traz desafios próprios. Marques diz que é o caso da divulgação de salários de servidores, determinada como legítima em 2015 pelo STF (Supremo Tribunal Federal) por ser considerada uma informação de interesse público.
No Fonacate, o presidente afirma já ter recebido denúncias sobre como a divulgação de dados foi usada para selecionar vítimas entre funcionários públicos e aplicar golpes, sobretudo nos aposentados. “Na transparência, também temos que ter alguns cuidados de não expor questões do Estado ou servidores de forma desnecessária”, diz.
A ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados), responsável por fiscalizar a LGPD, orienta que a publicação dessas informações deve ser feita com cautela, evitando mostrar detalhes como o CPF e a matrícula do servidor.
A LGPD determina medidas de segurança para reduzir riscos de informações com acesso aberto. O guia da Autoridade para tratamento de dados pelo poder público oferece orientações sobre a aplicação da lei.
DADOS COMO FUNDAMENTOS DE POLÍTICAS PÚBLICAS
De acordo com Nairane Rabelo, diretora do conselho diretor da ANPD, dados são importantes para traçar um panorama da população e, com isso, desenvolver políticas públicas. Mas a coleta só pode ser feita se for estritamente necessária, com clareza sobre a finalidade do uso.
“É importante que o banco de dados público esteja atualizado, porque é base para garantia de políticas assistenciais, que atendem à população na medida da exatidão de seus cadastros. O tratamento adequado de dados pessoais é uma forma de fomentar a cidadania.”
A diretora diz que o Brasil ainda está formando uma cultura de proteção de dados. O poder público encontra entraves como a burocracia, falta de recursos e desorganização estrutural para se adequar à lei de maneira ampla.
Neste ano, a ANPD divulgou uma lista de processos sancionatórios para investigar se entidades infringiram a lei de proteção de dados. Entre os oito listados pela Autoridade, sete eram órgãos públicos.
Segundo Rabelo, desde o início da atuação da ANPD foi observado um número maior de casos de ataques e vazamento de dados pessoais no setor público, o maior detentor de informações desse tipo, além de demora e dificuldade elevadas para se adequar à lei.
Ela afirma que, desde então, o setor vem buscando maneiras de se atualizar e capacitar servidores, incluindo o aumento no número de encarregados para o tratamento de dados.
Marina Atoji, da Transparência Brasil, diz que, além de garantir o direito à privacidade, a LGPD protege o cidadão contra o autoritarismo.
“Com uma legislação que protege dados sobre preferência política ou crença religiosa, há um resguardo contra uma possível perseguição que pode ocorrer a certos grupos, o que promove o exercício da liberdade.”
Luany Galdeano/Folhapress
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